Uma Conversa Espontânea Sobre Arquitetura e Memória

José Manuel Pedreirinho, Pedro Quintas e Filipa Lencastre

Esta conversa informal surgiu com espontaneidade durante uma visita a esta singular casa que se localiza em Caxias. Projetada pelo arquiteto José Manuel Pedreirinho, a residência desperta curiosidade e admiração, tornando-se o cenário perfeito para uma conversa entre três arquitetos: Pedro Quintas, Filipa Lencastre e o próprio José Manuel Pedreirinho. Entre recordações da construção e reflexões sobre os desafios arquitectónicos, o diálogo revelou não apenas os detalhes técnicos do projeto, mas também as emoções e as histórias que moldaram este espaço.

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José Manuel Pedreirinho é arquiteto, diplomado pela ESBAL em 1976. Iniciou a sua atividade profissional em 1969 como trabalhador independente e estabeleceu o seu próprio gabinete em 1980. No âmbito académico, foi professor na Escola Superior Artística do Porto (1985-1995), na Universidade Lusíada do Porto (1989-2011) e na Escola Universitária das Artes de Coimbra, onde assumiu a direção do Departamento de Arquitetura entre 1997 e 2014 e da própria escola entre 2012 e 2014. Entre 2015 e 2016, foi Diretor Científico do MBA em Gestão de Indústrias Criativas e Turismo no ISCAC, em Coimbra, e integrou centros de investigação da Universidade de Sevilha e da Universidade da Beira Interior.

 

Autor de diversas publicações sobre Teoria e História da Arquitetura portuguesa do século XX, colabora regularmente, desde 1979, com jornais e revistas da especialidade. Em 2012, obteve o grau de doutor pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Sevilha, com uma tese dedicada às metodologias de intervenção no património de pequenos aglomerados urbanos.

 

Entre 2017 e 2019, presidiu à Ordem dos Arquitetos.

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A conversa começou com um dos elementos mais emblemáticos do projecto: a meia-lua que se encontra numa das zonas centrais da casa. José Manuel Pedreirinho relembra a sua hesitação inicial na concepção dessa forma e explica a escolha:

 

“Queria fazer uma ligação entre os espaços e não me pareceu que ficasse bem um elemento reto, então a meia-lua foi a solução.”

 

Essa decisão não foi apenas estética, mas também estrutural, respeitando as exigências do tijolo, um material com regras muito próprias. Como ele mesmo destaca:

 

“O tijolo tem regras. Não permite qualquer coisa. Foi preciso encontrar um equilíbrio entre essas regras e a visão que tínhamos para o espaço.”

 

Outro elemento fundamental do projeto é a escada, que não apenas conecta os diferentes níveis da casa, mas serve como um eixo organizador da arquitetura. José Manuel Pedreirinho desenvolveu a casa em função dessa escada, permitindo que o espaço se desdobre em patamares e diferentes níveis, proporcionando uma experiência dinâmica e fluida. Filipa Lencastre destaca esse aspeto ao explorar a residência:

 

“Quando olhamos e andamos, apercebemo-nos sempre de mais uma surpresa.”

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Pedro Quintas, filho do antigo proprietário e também arquiteto, partilha memórias sobre a construção da casa, explicando que foi um processo gradual, condicionado pela disponibilidade da empresa da família:

 

“Como era para habitação própria e um investimento pessoal, era feita com as abertas que iam surgindo. As obras externas eram sempre prioritárias, e esta era a obra sacrificada.”

 

Esse tempo prolongado permitiu uma abordagem mais experimental, ajustando soluções arquitetónicas ao longo do percurso.

A casa revela um profundo respeito pela materialidade e pelo detalhe, algo que se percebe em elementos como os nichos estrategicamente distribuídos pelo espaço. Pedreirinho explica essa decisão com entusiasmo:

 

Sempre que houvesse a possibilidade de criar esses sítios, fazíamos questão de os ter para enaltecer as peças e os objetos únicos.”

 

Da mesma forma, a escolha dos materiais foi criteriosamente debatida. O chão de pedra de vidraço aplicado no piso térreo, num cuidado de evitar um excesso de cerâmica no conjunto da casa, por exemplo, contrasta com a solução adotada para a cave, que ficou revestida com tijoleira.

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O teto em madeira, além de reforçar a identidade arquitectónica da casa, influencia a forma como o espaço é percebido. Filipa Lencastre destaca essa sensação ao longo da visita:

 

“O pé-direito mais baixo, aliado ao teto de madeira, transmite uma sensação de conforto.”

 

Essas variações na altura dos espaços, ora mais amplos, ora mais acolhedores, contribuem para a riqueza sensorial do projeto.

A iluminação natural também desempenha um papel crucial na experiência do espaço. Durante a primavera e o verão, a luz ressalta a materialidade da casa e a vegetação ao redor, criando contrastes vibrantes entre o verde, o tijolo, o betão e a madeira. Essa interação entre luz e matéria torna a casa especialmente cativante em diferentes momentos do dia.

Outro detalhe que chama a atenção são os espaços multifuncionais. A zona de estar que se situa num patamar aberto que se liga entre o piso térreo e superior, por exemplo, combina materiais de forma inesperada, como a transição não linear entre a alcatifa e o tijolo. Filipa destaca essa riqueza de planos e texturas:

 

“Desta perspetiva, consigo ver a curva da casa, os planos horizontal, vertical e diagonal.”

 

Já a presença de elementos estruturais disfarçados, como a viga oculta que serve de banco, evidencia a riqueza no detalhe construtivo do projeto.

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A carpintaria artesanal também merece destaque na construção. Pedreirinho lamenta a crescente dificuldade em encontrar profissionais qualificados: 

 

Esse cuidado com os acabamentos fica evidente em elementos como o puxador da porta de entrada, talhado em madeira, e as estantes que acompanham todo o espaço, fazendo-se acompanhar muitas vezes com escadas que permitem o seu acesso devido ao amplo pé-direito.

Por fim, esta casa representa um testemunho vivo da arquitetura portuguesa dos anos 1980/90. O trabalho do Arq.º José Manuel Pedreirinho inscreve-se num período em que a construção residencial explorava novas formas e materiais, sempre respeitando a escala humana e a integração no território. A atenção ao detalhe, a experimentação formal e a harmonia entre estrutura e função fazem deste projeto um exemplo notável da criatividade e do rigor arquitetónico dessa época.

Mais do que uma casa, este espaço é um reflexo do pensamento arquitetónico de um tempo e de um arquiteto que soube transformar desafios em soluções inovadoras, criando uma obra que continua a surpreender e a inspirar.

 

 

Texto redigido por Filipa Lencastre, com base na conversa tida com o arquitecto José Manuel Pedreirinho e ao Arq.º Pedro Quintas, a 7 de Março de 2025.